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quinta-feira, março 11, 2004

MELANCOLIA


Algumas nuvens lá fora ameaçam chuviscos. Já só faltava mais esta para acabar o dia.
Apetecia-me desaparecer. Apetecia-me fugir e viver sozinho por uns tempos. Apetecia-me pôr à prova a minha pseudo-independência e certificar-me de que conseguia lidar com ela. Apetecia-me conhecer gente nova e visitar ambientes a que não estou habituado. Era mesmo o que eu queria neste momento.
Sonho com o futuro. Vejo-me casado. Tenho um carro, uma casa e uma mulher que gosta de mim. Se eu gosto dela? Não sei. Lembro-me de já a ter visto por aí, mas não fazia ideia de que as coisas chegariam a este ponto. Não ouço barulho em casa. Presumo que filhos ainda não temos. Não me lembro dos meus pais, não me lembro da minha família, não me lembro dos meus amigos, não me lembro dos meus tempos de estudante ou da vida que tinha em solteiro, não me lembro dos sítios que frequentava, não me lembro dos bares onde bebia, não sei se tinha irmãos, não sei com quem desabafava, não conheço as pessoas, estou num mundo estranho, esqueci-me de tudo quanto amava e acordo. Voltei à realidade. Penso eu.
O mundo está uma desgraça. Vou à janela e penso no mendigo a pedir esmola. Será que ele é feliz? Pelo menos não tem preocupações com a vida. Por que serei eu mais feliz do que ele? Não sou. A minha vida foi determinada no momento em que nasci. Se tivesse nascido mendigo não estava no estado em que estou, melancólico, desesperado, aborrecido, triste, porque toda uma vida de luxos e riquezas, festas e a ilusão de uma felicidade inexistente teria sido trocada pelo pouco que ele possa possuir de material, mas principalmente pela muita ignorância e despreocupação com que, solitário, passa os seus calmos e tranquilos dias aguardando melhores tempos.
Quero abrir a janela e saltar lá para baixo. Quero despedir-me da vida. Quero abandonar este sofrimento e partir para um lugar melhor. Quero agarrar-me a algo consistente sem que venha a desiludir-me como, aliás, me tem acontecido durante toda a vida. Quero que as minhas vontades se concretizem. Quero que os meus desejos sejam genuínos. Quero morrer e tornar a viver. Quero atirar-me lá para baixo... Falta-me a coragem.
Desço as escadas. Tenho uns assuntos a tratar. Num beco escuro tiro a mão do bolso e saco de uma mortalha. Queimo a pedra e enrolo um charro. Sento-me no chão, está frio, encosto-me à parede, sujo-me todo, acendo o charuto e fumo...
Estou de volta. Casa vazia. Quarto fechado. Está escuro lá dentro. A cadeira ainda está em frente à janela. Sento-me novamente. A droga faz efeito. Começo a sentir a “batidela” do costume. Rio-me. Fico sério, olho pela janela e rio-me outra vez. Olho à volta, respiro e torno a rir-me compulsivamente. De repente, paro, sem mais nem menos. Apercebo-me de que esta boa disposição artificial não deixa de me fazer ver o ridículo a que eu cheguei, e continuo a rir.
A moca já passou. Continuo no mesmo sítio, na mesma posição, na mesma cadeira. E estou sóbrio. Estive duas horas aqui parado. Mas já estou bem.
Tenho fome. Apetece-me comer mas não quero sair daqui. Apetece-me qualquer coisa para acalmar o estômago mas o meu corpo não se quer levantar daqui. Apetece-me comer, mesmo. As pernas não me obedecem. Quero andar e não consigo, quero esticar o braço mas é inútil, berro por alguém mas não me ouvem, eu próprio não me ouço, e tenho a sensação que morri, mas está escuro e parece-me que mergulho num poço sem fundo, e caio, e bato contra as paredes, e tento abrir os olhos mas não consigo, e penso estar acompanhado mas não sei quem está comigo, porque não vejo, e não me mexo, e quando estou quase a chegar ao fundo, parece-me, porque vejo uma luz ao fundo, como nos filmes, mas quando estou quase a chegar, mesmo lá no fundo, no fundo eis que acordo! Porra, que merda de sonho. Levanto-me e mexo os braços e as pernas, olho lá para fora para ver se alguma coisa mudou e berro com toda a força dos meus pulmões desfeitos pelo tabaco, e ouço! E berro mais para ter a certeza de que estou vivo, até que batem à porta... É a vizinha. Veio perguntar se tinha acontecido alguma coisa, por causa do barulho.
Rio-me, mas com vontade, e penso se já não estarei curado, se ainda me sobra uma réstia de desespero, e aí estraguei tudo. Sento-me na cadeira e enlouqueço, e choro, e falo sozinho, e limpo as lágrimas à camisola, até que me levanto e atiro a cadeira contra a parede, desfazendo a pobre em pedaços. E lembro-me de como gostaria de ser uma cadeira. Ao menos seria útil à sociedade, apoiando os majestosos cus de quem me tivesse em casa, ou enfeitando salões e palácios, observando quem por ali passasse na espera de que me deitasse o olhar, pleno de admiração e júbilo por me ver ali, mas afinal recordo que cadeiras não vêem e não têm sentimentos, e que portanto eu já não queria ser uma cadeira, até porque algum gajo passado me podia partir em bocados. E choro. Choro porque tenho pena da cadeira que destruí, choro porque se calhar essa cadeira já serviu muita gente e agora morreu...
Apalpo o bolso da camisa e meto a mão lá dentro. Um maço de Marlboro, uma carteira de fósforos, um preservativo e uma caneta. Estou pronto para o que der e vier. Acendo um cigarro e fecho os olhos por uns minutos. Tenho sono. Atiro o cigarro para o chão e chuto-o para um canto, onde já se acumulam outros restos, misturas de beatas, cinzas, fósforos e um isqueiro estragado. Deito-me e durmo.
Não tenho noção do tempo. Parece-me que dormi horas e horas sem fim, mas ao mesmo tempo sinto que o meu corpo precisa de mais uns dias de repouso. Estou mole, estou apático, sinto-me a desfalecer e a bater com a cabeça nas paredes de tanto sono acumulado, e de repente levanto-me da cama, como se o sono tivesse ido embora e me tivesse deixado só, sem ninguém ou nada para ver, falar e tocar, sem algo com que eu me possa distrair, sem nada que ocupe o tempo que eu já não posso aproveitar.
Nestas alturas é que eu gostava muito de ser outra pessoa. Assim podia ter uma vida completamente diferente. E daí talvez não. A vida é sempre a mesma coisa. Os gajos que nos passam pela frente é que podem ser outros. Se calhar os animais é que vivem bem. Se eu fosse uma ave, levantava voo e ia para longe, mesmo para longe, que era para ter a certeza de que ninguém vinha atrás de mim, e assim eu tinha que conhecer pessoas doutros sítios e podia modificar a minha imagem, e era capaz de ser outra pessoa, ainda que o meu corpo fosse o de um animal, e com outra personalidade, e a vida que eu tinha era mais fixe, e se me chateasse outra vez tornava a fugir, e voava para mais longe se conseguisse, e era capaz de gostar de ir a outro planeta, ao menos já ficava a saber se há lá gente ou não, mas se não houvesse ficava chateado e tinha que ir para outro lugar, e chegava a um ponto em que não tinha mais sítios para ir, até que deixava de bater as asas e caía, e deixava-me cair, que era para morrer e não me preocupar mais com a vida. Afinal já não quero ser uma ave, nem uma cadeira, e mendigo se calhar também não, porque no meio disto tudo o que conta são as pessoas e quando elas não são o que nós esperamos tudo desfalece e se quebra em pedaços mil, mesmo quando já foram tudo e por nós fizeram tudo e acabaram por nos tornar, um dia, felizes. O que conta, afinal, é a companhia de alguém que faz falta aqui e agora, e é isso, talvez, aquilo de que eu mais preciso neste momento…




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